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fevereiro 29, 2008

Presença, Mário Quintana


É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,

teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento

das horas ponha um frêmito em teus cabelos...

É preciso que a tua ausência trescale

sutilmente, no ar, a trevo machucado,

a folhas de alecrim desde há muito guardadas

não se sabe por quem nalgum móvel antigo...

Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela

e respirar-te, azul e luminosa, no ar.

É preciso a saudade para eu sentir

como sinto - em mim - a presença misteriosa da vida...

Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista

que nunca te pareces com o teu retrato...

E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te!

fevereiro 04, 2008

Luis Gonzaga


" Quando eu vim dos sertão,

seu moço do meu Bodocó

a malota era um saco

e o cadeado era um nó

só trazia a coragem e a cara

viajando num pau de arara

eu penei,

mas aqui cheguei... '

Vento forte da África, por Solano Trindade



Tem gente com fome

- Trem sujo da Leopoldina

correndo

correndo

parece dizer

tem gente com fome

tem gente com fome

tem gente com fome

Piiiiii

Estação de Caxias

de novo a dizer

de novo a correr

tem gente com fome

tem gente com fome

tem gente com fome

Debaixo do tamarindo, por Augusto dos Anjos

No tempo de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilíssimos trabalhos!


Hoje, esta árvore de amplos agasalhos
Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da flora brasileira
E a paleontologia dos Carvalhos!


Quando pararem todos os relógios
De minha vida, e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,


Voltando à pátria da homogeneidade,
Abraçada com a própria Eternidade,
A minha sombra há de ficar aqui!

"Chope",Carlos Souto Pena Filho


Na avenida Guararapes,

o Recife vai marchando.

O bairro de Santo Antonio,

tanto se foi transformando que,

agora às cinco da tarde,

mais se assemelha a um festim.

Nas mesas do Bar Savoy,

o refrão tem sido assim:

São trinta copos de chope,

são trinta homens sentados,

trezentos desejos presos,

trinta mil

sonhos frustrados

O cão sem plumas", João Cabral de Melo Neto


(...) Aquele rio

era como um cão sem plumas.

Nada sabia da chuva azul,

da fonte cor de rosa,

da água do copo de água,

da água do cântaro,

dos peixes de água,

da brisa na água.

Sabia dos caranguejos

de lodo e ferrugem.

Sabia da lama como de uma mucosa. (...)

Na paisagem do rio

difícil é saber onde começa o rio;

onde a lama começa no rio;

onde a terra começa da lama

onde o homem, onde a pele começa

da lama; onde começa o homem

naquele homem.

sobre o Recife, por Capiba.


""Recife cidade lendária

das negras de engenho cheirando a bangüe..."

Evocação.por Manoel Bandeira


Rua da União...

Como eram lindos os nomes das rua da minha infância

Rua do Sol (Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)

Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...

... onde se ia fumar escondido

Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...

... onde se ia pescar escondido

Capibaribe-Capibaribe

Lá longe o sertãozinho de Caxangá

Banheiros de palha

Um dia eu vi uma moça nuinha no banho

Fiquei parado o coração batendo

Ela se riu

Foi o meu primeiro

alumbramento
Manoel Bandeira



ruas e praças do recife, Clarice Lispector

“Como se enfim o mundo se abrisse de botào

que era em grande rosa escarlate.

Como se as ruas e as praças do Recife

enfim explicassem para que tinham sido feitas.

Como se vozes humanas enfim cantassem

a capacidade de prazer que era secreta em mim.

Carnaval era meu, meu".

“Ai que saudade tenho do meu Recife", Antonio Maria



“Ai que saudade tenho do meu Recife
Da minha gente que ficou por lá
Quando eu pensava,
chorava,
falava,
Contava vantagem,
marcava viagem
Mas não resolvia
se ia
Vou-me embora
Vou-me embora
Vou-me embora
Pra lá”
Frevo N0 2 do Recife

" Tarde no Recife", por Joaquim Cardozo


" tarde no Recife

da ponte Maurício o céu e a cidade......

Recife romântico

dos crepúsculos das pontes

dos longos crepúsculos

que assistiram à passagem dos fidalgos

holandeses....

Recife romântico

do crepúsculo das pontes

e da beleza católica do rio"

A Cidade, por Chico Science


A Cidade
O sol nasce e ilumina
as pedras evoluídas
que cresceram com a força
de pedreiros suicidas
Cavaleiros circulam
vigiando as pessoas
Não importa se são ruins
nem importa se são boas
A cidade se apresenta
centro das ambições
para mendigos ou ricos
e outras armações
Coletivos,
automóveis ,
motos e mêtros
Trabalhadores,
patrões,
policiais,
camelôs
A cidade não pára
a cidade só cresce
O de cima sobe
e o de baixo desce
A cidade não pára.





"...dia nítido lavado pelo Capibaribe, por Mauro Mota

"...dia nítido lavado pelo Capibaribe.o rio ninando o Recife. O Recife criança em seus braços maternos."


A chuva cai sobre o Recife devagar,
banha o Recife,
apaga a lua,
lava a noite,
molha o rio,
e a madrugada neste bar.

A chuva cai sobre o Recife devagar.
A chuva cai sobre o telhado das casinhas de subúrbio,
canta berceuses a doce chuva.
É a voz das mães que estão no canto de onde a chuva agora veio.

A chuva cai,
desce das torres das igrejas do Recife,
corre nas ruas,

e nestas ruas,
ainda há pouco tão vazias,
agora passam,
de capote,
transeuntes do tempo longe,
esses fantasmas de mãos frias.

Mauro Mota
(nasceu no Recife a 16 de agosto de 1911)

NOTURNO, Ascenso Ferreira


Sozinho, de noite,

nas ruas desertas do velho Recife

que atrás do arruado

moderno ficou...

Criança de novo

Eu sinto que sou.

Larga de ser vagabundo, Ascenso!



Poeta, Ascenso Carneiro Gonçalves Ferreira nasceu no município de Palmares, zona da Mata de Pernambuco, a 09 de maio de 1895, filho único do comerciante Antônio Carneiro Torres e da professora Maria Luiza Gonçalves Ferreira. Órfão aos 13 anos de idade, passa a trabalhar na mercearia de um tio e, em 1911, publica no jornal A Notícia de Palmares, o seu primeiro poema, "Flor Fenecida".Começou a colaborar em jornais em 1912, em Palmares e Recife PE. Em 1917 fundou, com Antonio de Barros Carvalho, Antonio Freire e Artur Griz, entre outros, a sociedade Hora Literária de Palmares. Em 1922 tornou-se colaborador nos jornais recifenses Diário de Pernambuco e A Província. Dois anos depois, passou a escrever para os periódicos Mauricéia, Revista do Norte, Revista de Pernambuco, A Pilhéria, Revista da Cidade e Revista de Antropofagia. Participou, em 1926, do I Congresso Regionalista do Nordeste e, em 1934, do Congresso Afro-Brasileiro, ambos realizados em Recife. Seu primeiro livro de poesia, Catimbó, foi lançado em 1927. Em 1939 publicou a obra poética Cana Caiana; seguiram-se Poemas, 1922/1951 (1951), Poemas, 1922/1953 (1953), Catimbó e Outros Poemas (1963), Poemas (1981) e Eu Voltarei ao Sol da Primavera (1985). Na década de 1940 realizou conferências e estudos sobre divertimentos populares do Nordeste.

fevereiro 03, 2008

PELAS RUAS DO RECIFE, por Clóvis Campêlo


Pelas ruas do Recife

surge a novidade,

afirmam-se credos seculares,

renascem mitos modernos.

Pelas ruas do Recife

dorme-se o sono dos justos,

cessam as palavras,

falam por si sós os fatos.

Pelas ruas do Recife

caminha a humanidade,

correm as notícias,

dispara a revolução.

Pelas ruas do Recife

travam-se todas as lutas,

cruzam-se todos os olhares,

reverenciam-se todos os deuses.

Pelas ruas do Recife

transitam todos os anjos,

ocorrem todas as mortes,

condensam-se todas as imagens.

Clóvis CampêloRecife, 1999